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O papel das redes da sociedade civil na promoção da agroecologia no Brasil

Maria Emília Lisboa Pacheco2

Caminhos da história

Os primeiros movimentos de agricultura alternativa no Brasil iniciaram-se na década de 1970 como contestação ao modelo da Revolução Verde. Baseado nos monocultivos das culturas de exportação, no uso de insumos químicos e tecnológicos, com uma crescente concentração de terras, mostrou os impactos sociais, ambientais e na saúde humana. O regime autoritário, na época, reorientou os instrumentos de política como ensino, pesquisa, extensão rural e crédito para favorecer a expansão do agronegócio. Estava em curso o que caracterizamos como modernização conservadora. Um modelo agroexportador baseado na expansão da fronteira agrícola com recursos financeiros e fortes subsídios do estado em detrimento do mercado interno e abastecimento alimentar e gerador de conflitos agrários. Mas foi na década de 1980 que o movimento da agricultura alternativa foi se fortalecendo com a perspectiva de preservação e equilíbrio do meio ambiente, defesa da saúde, e valorização do papel do campesinato na produção de alimentos. Consistia sobretudo na aplicação de técnicas baseadas no manejo do solo sem insumos químicos, rotação de culturas, conservação de sementes, e outras práticas ecológicas. Era incentivado por organizações não governamentais, movimentos sociais, comunidades eclesiais de base (CEBS) ligadas à Igreja Católica e sindicatos de trabalhadores/as do campo com atuação nas diferentes regiões do país.

Em 1983, foi criado o Projeto Tecnologias Alternativas como um projeto anexo à organização não governamental (ONG) Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) e denominou-se Projeto PTA-FASE. Seu propósito inicial era identificar as tecnologias alternativas ecológicas a partir de experiências bem sucedidas em comunidades da agricultura familiar. Várias ONGs dedicadas ao trabalho com esta perspectiva passaram a interagir com esse projeto, assim como nasceram novas organizações com esse propósito. Foram então lançadas as bases de Redes de Intercâmbio Tecnológico, formada por 16 organizações. Naquela época considerava-se necessária a experimentação em áreas típicas de trabalho dos agricultores tendo como base a realização de diagnósticos sobre os sistemas produtivos. Assim nasceram os Centros de Tecnologia Alternativa (CTAs). A aproximação das redes de agricultura alternativa existentes no Brasil com o trabalho de pesquisa desenvolvido sobretudo na América Latina, assim como o intercâmbio de experiências, a exemplo da metodologia “camponês a camponês”, tiveram importante significado nesta trajetória. Ao mesmo tempo realizavam-se no país os Encontros Brasileiros de Agricultura Alternativa (EBAs) promovidos pela Federação das Associações de Engenheiros Agrônomos que interagiam com essas nascentes organizações da sociedade civil. Por iniciativa do Projeto PTA-FASE, em 1989, houve o lançamento do livro “Agroecologia – as bases científicas da agricultura alternativa”, de autoria do pesquisador Miguel Altieri3. Foram então sedimentando-se as bases do campo do conhecimento científico da Agroecologia, com seus princípios e práticas e o movimento agroecológico. Em meados da década de 1990, já no período de redemocratização e sob a inspiração da nova Constituição Brasileira de 1988, crescem os debates sobre a agroecologia no país, irradiando-se entre os movimentos sociais, organizações não governamentais (ONGs), em interação com profissionais de instituições de ensino superior e de pesquisa, bem como profissionais de assistência técnica e extensão rural (ATER).

Criação da ANA e a mobilização nos encontros nacionais

A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), criada em 2002, é fruto desta história. Constituiu-se como um espaço de compartilhamento de saberes, de incidência política, de articulação e convergência entre movimentos sociais, redes e organizações da sociedade civil engajadas em experiências concretas de promoção da agroecologia.4 Nasceu no período de eleição presidencial após a realização do I Encontro Nacional de Agroecologia (ENA). Já foram realizados quatro ENAs. Eles mantêm viva a chama da organização e mobilização do movimento agroecológico. Têm o sentido de processo que vai se construindo desde o âmbito local com a participação ativa de articulações regionais e estaduais, grupos e coletivos de trabalho. Cumprem um papel específico muito importante de: (i) permitir a troca de experiências em curso em todo o país, de forma que os aprendizados técnicos e metodológicos possam ser compartilhados; (ii) discutir os efeitos das políticas públicas para a agricultura familiar e para os povos indígenas e povos e comunidades tradicionais e apresentar propostas; e (iii) dar visibilidade pública à agenda política do movimento agroecológico junto aos governos e à sociedade. Depois do II ENA, realizado em 2006, voltamos a nos encontrar, em 2014, no III ENA. Era o Ano Internacional da Agricultura Familiar, um contexto de significativas conquistas. A Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica havia sido lançada em 20125 , com a participação ativa do movimento agroecológico através de debates, articulações e formulação de propostas. Com o lema Cuidar da Terra Alimentar a Saúde Cultivar o Futuro, reuniu 2.100 pessoas, sendo 70% de camponeses (as), povos indígenas e comunidades tradicionais e 50% de mulheres. O aperfeiçoamento da metodologia no processo preparatório incluiu a realização de jornadas agroecológicas e culturais para compartilhamento de experiências nas regiões.

Em 2018, quando a nova Constituição completava 30 anos, e após o golpe contra a Presidenta Dilma Rousseff, em meio a um novo retrocesso da democracia no país, realizamos o IV ENA6. Com o lema “Agroecologia e Democracia Unindo campo e Cidade”.7

Encontramo-nos em um Parque Público na cidade de Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais reunindo milhares de agricultores e visitantes da cidade. A motivação foi tanto mostrar “por que interessa à sociedade apoiar a agroecologia”, como expor nossa visão crítica sobre o desmonte de políticas públicas, e reivindicar a manutenção e aprimoramento de políticas nos âmbitos federal, estadual e municipal. Naquele momento, vários setores da sociedade mobilizavam-se na campanha- “Por Nenhum Direito a Menos!”

Encontro de diálogos e convergências entre redes e fóruns

Depois de 2006, quando ocorreu o II ENA, ampliamos as perspectivas de articulação e interação, convidando, em 2011, outras redes, fóruns e articulações para um Encontro Nacional de “Diálogos e Convergências”. A pauta de debate foi construída coletivamente e sua realização foi precedida de três oficinas regionais nas quais se experimentou a metodologia de diálogo entre redes.

A Carta Política8 evidencia os resultados da dinâmica interativa que permitiu o fortalecimento e o enriquecimento recíproco de redes nacionais constituídas a partir das perspectivas da agroecologia, da soberania e segurança alimentar e nutricional, da economia solidária, da saúde coletiva, da justiça ambiental e do feminismo.

Os temas abordados expressavam esta interação: (i) Reforma Agrária, Direitos Territoriais e Justiça Ambiental; (ii) Mudanças Climáticas: impactos, mecanismos de mercado e a Agroecologia como alternativa; (iii) Defesa da Saúde Ambiental e Alimentação Saudável e o Combate aos Agrotóxicos e Transgênicos; (iv) Direitos dos agricultores e agricultoras, povos e comunidades tradicionais ao Livre Uso da Biodiversidade; (v) Soberania Alimentar e Economia Solidária: produção, mercados, consumo e abastecimento alimentar.

A partir de então, seguimos construindo a pauta do movimento agroecológico, tecendo interações entre temas que são abordados com denúncias e anúncios, segundo a metodologia da ANA, mostrando a relação entre sujeitos políticos e suas organizações, outras redes e fóruns.

No IV ENA, avançamos o debate incluindo análises de experiências segundo as especificidades dos biomas brasileiros. E os temas foram assim construídos:

  • Comida de verdade9 no campo e na cidade: caminhos e diálogos entre Agroecologia e a Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional;
  • Direito à Terra e Território: conflitos e resistência dos povos, do campo, das águas e da floresta;
  • Água e Agroecologia: em defesa das águas como bem comum;
  • Agriculturas Urbanas, Agroecologia e Direito à Cidade;
  • Biodiversidade: bens comuns, soberania alimentar e territorial dos povos do Brasil;
  • Saúde Integral e Medicina Tradicional;
  • Sem feminismo não há agroecologia ( o papel das mulheres e suas lutas pelo reconhecimento e contra toda forma de violência);
  • (Contra os) Agrotóxicos e Transgênicos;
  • Construção social de mercados (circuitos curtos como feira, pequenos mercados, etc. e compras públicas como o Programa Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE);
  • Desafios e alternativas para o financiamento da Agroecologia;
  • Mudanças climáticas e Agroecologia;
  • Comunicação e Culturas Populares: territórios simbólicos da Agroecologia;
  • Juventudes e Agroecologia: o campo e a cidade na luta pela Agroecologia;
  • Educação do Campo e Construção do Conhecimento Agroecológico (aqui se inclui a abordagem dos diálogos entre conhecimentos tradicionais e conhecimentos técnico-científicos)10

Marcha das Margaridas: mulheres na construção da Agroecologia

No ano 2000, foi realizada a primeira Marcha das Margaridas11 , organizada pela Secretaria de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras na Agricultura (Contag) como parte da Campanha da Marcha Mundial das Mulheres (MMM). Sua realização consistiu em dar visibilidade ao trabalho e à contribuição econômica, política e social das mulheres rurais; denunciar e protestar contra a fome, a pobreza e todas as formas de discriminação, violência e exploração vivenciada pelas mulheres, além de apresentar propostas de políticas públicas para as mulheres do campo, da floresta e da cidade (CONTAG, 2015).

A Agroecologia passou a integrar um dos seus eixos estruturadores como estratégia política, em 2007. Nesse tempo havia espaços de participação social e monitoramento de políticas públicas como: Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf), Comissão Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (Cnapo) e o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA). A participação das mulheres de vários movimentos sociais nesses conselhos, favoreceu a aproximação e interação com o movimento agroecológico.

Importante reconhecer que as mulheres estão ressignificando a agroecologia, porque trazem à tona a dimensão das relações sociais, dos direitos das mulheres e da igualdade. Exercitam o direito à autonomia e à auto-organização, falam dos sentidos da reprodução da vida e do cuidado, baseados nos princípios da economia feminista. Elas são responsáveis por grande parte da produção e são fundamentais para garantir a conservação e manejo da biodiversidade, com destaque para o resgate e multiplicação da diversidade das sementes tradicionais, para a produção variada de alimentos saudáveis. Defendem a valorização do autoconsumo, ampliando os sentidos das práticas econômicas, que vão além do valor de troca.

A Marcha das Margaridas inclui, hoje, em sua agenda, dentre outros, temas: (i) terra, água e agroecologia; (ii) por uma vida livre de todas as formas de violência e por democracia com igualdade e fortalecimento da participação política das mulheres.

Em 2011, com a presença da então presidenta Dilma Roussef, durante a Marcha das Margaridas, as mulheres reivindicaram a aprovação de uma Política Nacional de Agroecologia, que contemplasse a contribuição na redução das desigualdades de gênero, por meio de ações e programas que promovam a autonomia econômica das mulheres12

Interação entre a Política de Agroecologia e Segurança Alimentar e Nutricional

O Brasil foi possivelmente o primeiro país na América Latina a ter uma Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), publicada em 20 de agosto de 2012 a partir do decreto presidencial nº 7.794. Essa política foi construída em parceria com a sociedade civil e as organizações sociais do campo e da floresta sobre a necessidade de se produzir alimento em quantidade e qualidade, diversificados e saudáveis, e com o menor impacto possível ao meio ambiente e à vida.

O movimento social pela soberania e segurança alimentar e nutricional que já estava em curso no país desde os anos 80, se encontra com o movimento agroecológico na proposição de políticas públicas. As definições das diretrizes de ambas políticas dialogam entre si.

A Política Nacional de Agroecologia se orienta para “a promoção da soberania e segurança alimentar e nutricional e do direito humano à alimentação adequada e saudável, por meio da oferta de produtos orgânicos e de base agroecológica isentos de contaminantes que ponham em risco a saúde”.13

Em 2010, o Decreto nº 7.272, que instituiu a Política Nacional de Segurança Alimentar e regulamenta o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Lei 11.346 de 2006), já incluia em suas diretrizes “a promoção do abastecimento e estruturação de sistemas sustentáveis e base agroecológica...”14

Mas este caminho foi interrompido com a escalada autoritária e violação de direitos que marca o atual governo.

Adequação de estratégia: sobre políticas públicas e poder local

No contexto de desconstrução das políticas no âmbito federal, a partir do golpe de 2016, a Articulação Nacional de Agroecologia, além das manifestações públicas de denúncia e as campanhas em favor da retomada de programas das políticas de agroecologia e segurança alimentar e nutricional, a exemplo das compras públicas, reorientou também suas estratégias para o âmbito das políticas públicas de âmbito municipal.

Uma campanha sobre “Municípios agroecológicos e políticas de futuro”15 , em 2020, identificou cerca de 500 iniciativas de apoio à agricultura familiar, à agroecologia e de promoção da segurança alimentar e nutricional, em cerca de 700 municípios nas várias regiões do país.16 Há um mapa interativo que mostra também os resultados dessa iniciativa.17

Desencadeada no contexto de eleições municipais, esta campanha buscou a adesão de candidatos(as) que assinaram uma carta pública com o compromisso de instituir políticas de agroecologia e segurança alimentar e nutricional nos municípios, uma vez eleitos.

Seguimos atualmente com a perspectiva de avançar nas análises em uma amostra de municípios identificados com maior potencialidade nas várias regiões com o objetivo de aprofundar sobre processos de incidência política com participação social na formulação de propostas locais e ampliar ações em rede com outros municípios vizinhos.

 

1 Palestra virtual na iniciativa de formação de formadores de agroecologia do Programa de Cooperação Técnica (TCP/INT/3708) - Desenvolvimento das Capacidades do Centro de Competências para a Agricultura Familiar Sustentável na Comunidade de Países de Língua Portuguesa, em 20 de abril de 2021.

2 Assessora da ONG brasileira FASE- Federação de Órgãos para a Assistência Social e Educacional; integrante do Núcleo Executivo da Articulação Nacional de Agroecologia e da coordenação do Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional que faz parte da RedeSAN CPLP.

3 Cf. Altieri, Miguel A. – Agroecologia – as bases científicas da Agricultura Alternativa, Rio de Janeiro, PTA:FASE, 1989.

4 É formada, hoje, por articulações regionais e estaduais com ongs e movimentos sociais; grupos de trabalho temáticos de biodiversidade e agricultura urbana; coletivo de comunicação e grupos de trabalho de sujeitos sociais – mulheres e juventude. Há ainda um núcleo e uma secretaria executivas, e uma plenária que reúne representantes das organizações e movimentos sociais que integram esses vários espaços.

5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7794.htm

6 Ver Vídeo sobre a realização do IV ENA: IV Encontro Nacional de Agroecologia - Curta Agroecologia – 2018. https://www.youtube.com/watch?v=90_HDSmWgY8

7 Ver Carta Política do IV ENAhttps://agroecologia.org.br/wpcontent/uploads/2019/03/carta_politica_web.pdf

8 https://agroecologia.org.br/wp-content/uploads/2013/01/carta-politica-do-encontro-naci onal-de-dialogos-e-convergencias.pdf Participou também deste encontro a organização parceira da ANA, a Associação Brasileira de Agroecologia, criada em 2004, que reúne professores (as), pesquisadores (as), estudantes das mais diversas áreas do conhecimento. Desde sua criação, a ABA-Agroecologia vem realizando e apoiando ações dedicadas à construção do conhecimento agroecológico.

9 A concepção de Comida de Verdade está contida no Manifesto da 5ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional à Sociedade Brasileira sobre Comida de Verdade no Campo e na Cidade, por Direitos e Soberania Alimentar. 2015. https://www.abrasco.org.br/site/wp-content/uploads/2017/06/copy2_of_Manifesto_comidadeverdade. pdf

10 Ver vídeos de experiencias dos agricultores no youtube curta agroecologia com os temas: Comida de verdade; Roça na Cidade, Herdeiros da Terra, Sempre-viva, Outras Marias. E o filme - As sementes - https://www.youtube.com/watch?v=CCZcOCcm-9Q Direção: Beto Novaes e Cleisson Vidal.

11 A denominação “Margaridas” é uma homenagem à Margarida Maria Alves camponesa assassinada, em 1983, a mando de latifundiários. Era presidenta do Sindicato dos Trabalhadores(as) Rurais de sua cidade.

12 Vídeo da Contag sobre os 20 anos da Marcha das Margaridas https://www.youtube.com/watch?v=mW883YU8QGA

13 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/decreto/d7794.htm

14 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/decreto/d7272.htm

15 Municipios-Agroecologicos-e-Politicas-de-Futuro.pdf (agroecologia.org.br)

16 Municipios-Agroecologicos-e-Politicas-de-Futuro.pdf (agroecologia.org.br)

17 https://agroecologiaemrede.org.br/busca/?visao=mapa&mapeamento=politicaspublicasmunicipais